segunda-feira, 26 de junho de 2017

A importância do tom (e onde Arkham Knight falha)

Originalmente publicado em 12 de janeiro de 2016

Este post contém spoilers para os jogos Batman: Arkham Asylum, Batman: Arkham City e Batman: Arkham Knight.

Então, no ano passado, o lançamento de Batman: Arkham Knight finalizou uma das trilogias mais aclamadas de todos os tempos nos videogames. E, assim como boa parte das trilogias de super-heróis, foi uma terceira parte cheia de altos e baixos e que me deixou com um gosto ruim na boca. Mesmo assim, são jogos muito bem feitos, e a parte que eu gostava dos jogos anteriores ainda está em Arkham Knight. O problema é que a Rocksteady, por algum motivo, resolveu fazer uma mudança drástica na atmosfera e no conteúdo.

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Antes de entrar de cabeça nos problemas, precisamos estabelecer de qual Batman estamos falando quando falamos na série Arkham. Particularmente, são três diferentes Batmen que eu conheço (podem haver mais variações, visto que eu não leio os quadrinhos). O primeiro é aquele da série de TV da década de 60, aquele do Adam West, onde o Batman tem o seu bat-spray anti-tubarão e seu bat-cartão de crédito, e tudo é super colorido e bobinho e tem dias que o Batman nem consegue jogar fora uma bomba, poxa. (Que é o melhor Batman de todos. Pronto, falei!)

"Rápido, Robin, me passe o bat-spray anti-tubarão!"
"Rápido, Robin, me passe o bat-spray anti-tubarão!"

O segundo é o que talvez seja mais conhecido ultimamente, o Batman ultra-sério, dark, violento, resultado do trabalho de Frank Miller em “Cavaleiro das Trevas”, considerado clássico por muitos, e que depois deu origem à trilogia dirigida por Christopher Nolan. Esse Batman (e, ainda que sem intenção, o Rorschach de Watchmen também) inspirou uma leva de outras reformulações de super-heróis para provar que quadrinhos não eram mais coisa de criança e podiam ser “maduros” e ter “conteúdo adulto”, que hoje se chama na gringa de “The Dark Age of Comic Books”, e é discutível se realmente valeu a pena essa guinada ao lado sombrio.

O terceiro Batman que conheço é o que surgiu com os filmes do Tim Burton, e mais tarde, com o desenho animado dos anos 90, que era uma versão séria o suficiente para manter sua estética noir e ao mesmo tempo era engraçado e leve o suficiente para ser colorido, exuberante e ridículo. Gosto dos filmes, apesar do consenso ser de que eles não são “Batman de verdade”, o que quer que isso signifique, mas gosto mais ainda do desenho animado, e este sim, é celebrado como um dos melhores desenhos já criados, e não é pra menos. Lembram da abertura?


Esse Batman é o Batman que é base para a criação dos jogos da série Arkham. Foi uma das ideias brilhantes da Rocksteady Studios, além dos sistemas de combate e de furtividade excelentes, eles também trouxeram os atores que dublavam os personagens: Kevin Conroy como Batman, Arleen Sorkin como Arlequina (personagem esta que foi invenção do desenho e se tornou tão popular que foi adicionada ao quadrinho), e Mark Hamill como Coringa. A empresa também trouxe o roteirista Paul Dini, que escrevia episódios da série, para escrever a história do jogo. Eles lembraram que, além do videogame ser uma mídia audiovisual, ela é uma mídia mais próxima do desenho animado do que do cinema, e isso nos deu um jogo que apesar de tomar algumas liberdades perto do final, era praticamente perfeito como um “simulador de Batman”. Arkham City continuou com a mesma premissa, e adicionando apenas um mundo aberto ao repertório do morcegão, parecia ainda mais perfeito.

Arkham Knight, no entanto, é diferente. Pode ter a ver com a saída de Paul Dini do roteiro do jogo, mas consigo pensar em muitas coisas sendo o estopim para a mudança de tom do jogo. A nova geração de consoles e seu novo foco em gráficos ultrarrealistas é um fator. Dá pra ver até os poros do Comissário Gordon nessa cutscene:

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O que quero dizer é que algo aconteceu que mudou completamente as prioridades da equipe da Rocksteady, e nem estou falando apenas da versão de PC totalmente defecada que eles lançaram, mas sim do jogo em si. Ele deixou de ser baseado nos desenhos, apesar das vozes de Kevin Conroy e Mark Hamill. Ele passou a ser mais parecido com os filmes de Christopher Nolan, e o propósito hoje é enumerar os vários problemas que isso criou para mim ao fechar esta trilogia. A começar por algo que é realmente removido dos filmes do Nolan: o Batmóvel.

O Batmóvel já havia feito uma aparição em Arkham Asylum, mas não o controlávamos. Naquele jogo, ele era bem próximo do Batmóvel do desenho animado, com um design mais baixo, feito para ser dirigido rapidamente e precisamente. O de Arkham Knight, nem tanto: é aquele tanque que você deve se lembrar do filme “The Dark Knight”, que simplesmente passa por cima de tudo. E eu tenho muitos probleminhas com esse Batmóvel, a começar que a presença dele já precisa ser justificada quebrando a suspensão de descrença da história em múltiplos pedaços.

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Então, o Coringa morreu no último jogo, e o Espantalho resolveu que agora era a hora de ele tomar conta do rolê e ameaçar cobrir Gotham City com gás do medo. Ele faz uma demonstração da potência do gás em um restaurante no centro da cidade, e depois disso, a polícia de Gotham organiza uma evacuação da cidade. Ao começar o jogo, só restaram os bandidos e alguns poucos policiais e bombeiros, que pouco conseguem ajudar a impedir que saqueadores dominem a cidade. E o Espantalho continua com seu plano de cobrir Gotham em toxina, sendo que a maioria dos afetados agora seriam seus próprios capangas. Hm... meio contraintuitivo, não é? Mas essa premissa está aqui para permitir que o Batmóvel seja utilizado sem afetar pessoas inocentes e quebrar as regras do Batman, mesmo que quebre as regras do próprio roteiro.

Mas não consegue deixar de quebrá-las mesmo assim. Batman, de maneira geral, tem duas grandes regras auto impostas: ele não mata ninguém, em circunstância alguma. Isso é discutível, já que ele segue uma filosofia de que ele não mata, ele só quebra os ossos dos caras e larga sozinhos na neve e quem mata é Deus, mas whatever, dá pra relevar. A segunda regra é que Batman não usa armas e/ou coisas que pareçam armas, pois seus pais foram mortos por armas de fogo. Então, entra o Batman de Arkham Knight, com um tanque gigantesco que demole prédios só por passar por eles, com uma metralhadora e um lança-foguetes! E você pode chamá-los de “não-letais” à vontade que não vai deixar de ser esquisito e fora de lugar. Também tem o potencial destrutivo desse tanque: como mencionei (e também para mostrar novamente o poderio gráfico dos novos consoles) o tanque passa por cima de qualquer coisa: cercas, muros de madeira, outros carros, pontes, e até construções pequenas são completamente demolidas por ele. Será que o Batman iria causar toda essa destruição na cidade que ele quer salvar? Entramos naquela discussão sobre a destruição que o Superman causa no filme “Man of Steel” de novo.

Só de brinks destruindo Gotham Só de brinks destruindo Gotham

A outra coisa é como utilizamos o Batmóvel. Talvez fosse mais legal se ele fosse apenas mais um upgrade pro seu arsenal, porém, o jogo constantemente faz você usar o troço, como se estivesse com medo de que tanto esforço de programação fosse desperdiçado em algo que os jogadores não iriam querer usar. Então, entra o Arkham Knight, um dos vilões principais do jogo, que mesmo depois de ter sua verdadeira identidade revelada no final, ainda me parece uma enorme desculpa para colocar no mundo um exército de tanques que, convenientemente, são operados por controle remoto. Você não pode explorar as ruas de Gotham sem ser morto por esses tanques, então é obrigado a usar o Batmóvel quando simplesmente planar pelos prédios já estava bom o suficiente. E isso também quebra a história do Arkham Knight, que é revelado como sendo um dos antigos Robins, e que sempre lembra você de que “ele te conhece e sabe como você pensa”. Ué, se sabe, então porque não coloca um motorista vivo dentro de um dos tanques? Ou melhor, amarra um dos seus capangas na lataria de um desses tanques e pronto! Arruinou a estratégia do Batman, porque ele não pode matar ninguém!

Ou a gente acha que ele não pode. Uma das regras do jogo de mundo aberto é a de que, se você der liberdade para os jogadores, eles vão abusar da mesma. Logo, dirigindo em alta velocidade pelas ruas de Gotham, é certeza que você vai atropelar gente por aí. E sabe como eles resolvem o problema de você atropelar pessoas com um tanque? Ele tem um campo eletromagnético que dá um choque nas pessoas antes delas serem atingidas. É, aparentemente, a solução pra um problema de colisão é uma descarga elétrica que faz o cara sair voando mais rápido e mais forte. Não tem jeito: o Batman de Arkham Knight mata. E mata uma GALERA, dependendo de como você jogar. Você pode dizer “é só não atropelar gente na rua”, mas você acha que eles ficam andando na calçada? Noooooope, eles estão saqueando as ruas, e tem gente pra todo lado, em alguns lugares chegando próximo dos 40, 50 bandidos. Então, quebram as regras do Batman para justificar esse trambolho.

Note a quantidade de pessoas no meio da rua, e todo o motion blur que indica a velocidade na qual estou correndo Note a quantidade de pessoas no meio da rua, e todo o motion blur que indica a velocidade na qual estou correndo

E os vilões também são quebrados para justificar o Batmóvel. O Arkham Knight é quase que uma desculpa eterna do jogo para enfiar mais e mais batalhas de tanque, que inflam o tempo do jogo artificialmente e sem usar das mecânicas perfeitas que Arkham Asylum e Arkham City já haviam estabelecido e que ainda estão aqui. Quando elas têm chance de aparecer, o jogo volta a ser mecanicamente interessante, mas uns belos 60% da história principal são gastos com batalha de tanque atrás de batalha de tanque, até com chefões tanque. O Charada é completamente descaracterizado, sendo usado não só como o cara dos “colecionáveis”, distribuindo pontos de interrogação verdes para você coletar, como também construindo pistas de corrida pra desafiar o Batman. PISTAS DE CORRIDA! O CHARADA!

Enfim, o Batmóvel é a parte que mais me irritou com sua onipresença e sua falta de conexão com o restante do jogo, e isso foi me tirando a vontade que eu tinha de jogar. Mas a outra coisa, como eu disse, foi a mudança de tom, e essa está refletida em como os personagens e vilões são apresentados neste jogo, especialmente o Espantalho. Este personagem, em Arkham Asylum, era um vilão de gibi (ou de desenho), mas um com o qual fizeram experiências interessantes. Em cada encontro com o vilão, você era “secretamente” afetado pelo gás do medo, e este fazia alucinações novas acontecerem, em vezes para recontar (de novo) a origem do Batman, em vezes para afetar ao jogador diretamente (eu realmente reiniciei meu computador achando que o jogo estava travando minha placa de vídeo na terceira vez). Já o Espantalho de Arkham Knight é um chato que fica grunhindo ameaças através de telões o tempo inteiro com uma voz monótona. E o pior: contrataram John Noble, um ator de alto calibre, conhecido por ser o Dr. Walter Bishop no seriado “Fringe” e o rei Denethor nos filmes do “Senhor dos Anéis”. Ele é foda! E é completamente desperdiçado em Arkham Knight.

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Mas o que incomodou mais também não foi isso, e sim o tratamento de Arkham Knight em relação a suas personagens femininas. Agora, eu sei que Asylum e City não eram exatamente maravilhosos neste quesito, com a saia curta da Arlequina e o colante da Mulher-Gato que era aberto até o umbigo pra mostrar os peitos. Mas pelo menos naqueles jogos elas tinham papéis importantes e salvavam e/ou eram uma ameaça a Batman. Não é o caso aqui.

Nós temos três personagens femininas em Arkham Knight: a Hera Venenosa, a Mulher-Gato e a Oráculo, também conhecida como Barbara Gordon, filha do comissário. Todas as três são utilizadas como motivação em algum ponto no jogo (morrendo ou sendo sequestradas). Barbara Gordon é a que mais incomoda, já que o jogo resolveu que seria uma boa ideia recriar a cena da lendária HQ “The Killing Joke”, escrita por Alan Moore, onde ela toma um tiro e fica aleijada, cortesia do Coringa. E além disso, ter uma cena onde ela, afetada pelo gás do medo, dá um tiro na própria cabeça, só pra gente descobrir mais tarde que isso era alucinação da cabeça do Batman. Mas as outras duas também não ficam atrás: a Hera Venenosa morre ao se sacrificar para limpar a cidade do gás do Espantalho, e a Mulher-Gato passa o jogo inteiro presa numa igreja sob os cuidados do Charada, que a mantém com uma coleira que só pode ser aberta se o Batman completar as suas armadilhas e (aff!) pistas de corrida.

É, porque é disso que as mulheres realmente precisam em pleno 2015. *cof cof* É, porque é disso que as mulheres realmente precisam em pleno 2015. *cof cof*

Isso tudo é uma pena, porque o jogo que eu gostava em Asylum e City ainda está aqui, enterrado debaixo deste tom ultra-sério e deste Batmóvel obrigatório que eu detesto. O sistema de combate está melhor e mais fluido do que nunca, apesar de ter um pouco de excesso de brinquedos no cinto do morcegão, e as situações de furtividade são ainda mais criativas e precisam de mais habilidade e estratégia. É quase como se o melhor jogo do ano estivesse enterrado debaixo de um dos piores. E é uma pena. Uma pena mesmo.

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